terça-feira, 18 de setembro de 2012

O Processo da Diferença

Encontro diversas dificuldades em formular um conceito de Identidade que seja geral, que abarque tudo que envolve a Identidade, que seja definitivo... Geralmente me rendo as diversas variedades que, realmente, a constituem. A autora, Woodward, explora muito em seu texto a questão da dicotomia, do sentido binário que a identidade pode possuir, inspirado na Lingüística de Saussure: a diferença, a oposição, a Identidade como sendo aquilo que "não somos", ao invés de ser aquilo que realmente "somos". Mas, como escrevi anteriormente, tenho uma certa dificuldade de extrair um conceito definitivo, por isso necessito de uma exemplificação, de uma elucidação.
O sistema eleitoral americano (Eleições Presidenciais) é muito confuso para nós brasileiros (talvez para o resto do mundo), pois lá o voto não é direto, no sentido mais puro que o conhecemos, além de não ser obrigatório. Os norte-americanos devem votar em um delegado estadual, pertencente ao Colegiado Eleitoral Nacional, e este, em tese, segue a orientação da maioria dos votantes na escolha do presidente. Cada estado americano possui o número de delegados correspondentes ao número de habitantes (o país possui no total 538 delegados, representando a Câmara e o Senado), ou seja, um estado como a Califórnia (mais populoso dos Estados Unidos) possui 55 delegados. Cada estado possui sistema próprio de votação e o candidato que ganhar a eleição no estado leva os votos de todos os delegados, sistema conhecido como: "the winner takes it all" (O vencedor leva tudo). Por exemplo: o candidato que ganhar na Califórnia levará os 55 votos, em uma corrida onde o futuro presidente deve fazer no mínimo 270 votos no Colegiado. Um sistema que gera várias aberrações, como na eleição de 2000 quando George Bush, mesmo perdendo a eleição geral por 500 mil votos de Al Gore, se sagrou vencedor. O sistema existe desde a primeira Constituição americana (1787) e serve como um exemplo à questão da Identidade e da Diferença.
Além das aberrações eleitorais que o sistema produz, como a vitória de um presidente que não recebeu a maioria dos votos, o sistema eleitoral americano também legitima uma dominação, principalmente nos estados do sul, de uma "elite" racial. Segundo o professor Alexander Keyssar, da Universidade de Harvard, o Colegiado americano veio bem a calhar às elites brancas dos estados do sul na hora de decidir um presidente, pois, por serem a maioria, os brancos sempre vencerão. Mesmo que populações imensas de negros e hispânicos votem no presidente A, por exemplo, o seu poder de decisão nem constará num todo, pois como "O Vencedor Leva Tudo", esses votos nunca irão aparecer. Essa estranha equação além de diminuir a participação política dessas populações, fortalece uma divisão apresentada desde a Guerra Civil Americana (Confederados e Defensores da Escravidão no Sul e o Norte com as defensores da Abolição) e que se sublima em um sistema bipartidário muito bem definido. Segundo Lévi-Strauss, somos muito mais o que não comemos do que o que comemos, ou seja, enxergamos muito mais nossa identidade no outro, que não somos, enquanto não buscamos a definição do que realmente somos, gostamos dessa dualidade. O sistema do Colegiado norte-americano legitima essa diferença no sentido mais nefasto dela mesma. Em 1964, o presidente Lyndon Johnson, ao sancionar a Lei dos Direitos Civis, disse: "Acabamos de entregar o sul dos Estados Unidos ao partido Republicano e demorará muito para que essa situação se reverta".
A famosa foto ao lado, de Elizabeth Eckford, 15 anos, mostra esta "diferença" imposta de forma totalmente autoritária, semeada ao longo da história e ainda explosiva, nos Estados Unidos. A foto documenta a primeira vez que negros e brancos dividiriam uma escola no sul dos Estados Unidos, somente em 1957. Elizabeth era uma dos nove estudantes que ingressaram na escola de Little Rock, no Arkansas e que, sob vaiais e gritos racistas, entraram na escola Central High School. A foto fala por si.
Os diversos grupos que existiram e ainda existem, nos Estados Unidos e em todo mundo, que continuam reproduzindo esse mesmo "não-saber" que transforma a diferença em violência e que ataca o multiculturalismo como sendo a razão de todos os problemas de seu país, assim como de sua vizinhança, continuam tentando se fazer definitivos, continuam tentando angariar elementos que os legitimem. O sistema eleitoral americano serviu, de certa forma, como essa legitimação, serviu como intimidação. Assim como no texto de Woodward, quando ela cita os sérvios e os bósnios na Guerra de Bósnia de 1992, muitas vezes buscamos invocar raízes históricas para construirmos a imagem do "outro", que será o espelho reverso da formação do "eu". A busca de soluções simples para problemas complexos, assim como a unificação de uma opinião, em justificativa de uma unidade nacional, já cometeram milhões de assassinatos. Já produziram diferenças demasiadamente violentas. Conseguiram, muitas vezes, se legitimar a partir de um aparato burocrático. A dominação legítima, que tanto escreve Weber, é geradora da racionalização dessa diferença, que, a critério de princípio pode não querer dizer violência, mas, se analisada profundamente, retorce os conceitos e os transforma. A Identidade esta em constante construção e, apesar do que dizem os Essencialistas, não acredito que ela posso ser definitiva, não acredito que ela possa abarcar tudo que propõe.
A formação de um professor elucida também muito bem a questão da identidade não-definitiva, afinal, passamos por inúmeros processos e inúmeras experiências que se sobrepõem, fortalecem ou somam com as nossas experiências anteriores e constroem aquilo que seremos, ou somos. Apesar de o sujeito não ser uma tábua-rasa, da forma de Locke, ainda assim, para que o processo de aprendizado docente se complete da maneira mais correta possível, é necessário a abertura deste para tudo aquilo que venha a somar. O desejo de saber como um processo que envolve alunos e professores e que, em seu âmago, é a educação.


Meu único desejo é um pouco mais de respeito para o mundo, que começou sem o ser humano e vai terminar sem ele - isso é algo que sempre deveríamos ter presente
Claude Lévi-Strauss


Algumas Referências:

http://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/the-new-york-times/2012/09/12/romney-usa-propagandas-politicas-de-teor-racial-para-atrair-eleitores-brancos.htm

http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-62/anais-da-fotografia/odio-revisitado

http://argemiroferreira.wordpress.com/2008/11/23/o-legado-racista-no-processo-eleitoral-dos-eua/

http://www.youtube.com/watch?v=SpLRpu0cWJM

http://www.revistasusp.sibi.usp.br/scielo.php?pid=S0034-83091994000100022&script=sci_arttext

Anexos:

Música escrita por Abel Meeropol e cantada por Billie Holiday, primeira música a tratar e condenar o racismo nos EUA.


Strange Fruit Billie Holiday
Southern trees bear a strange fruit
Blood on the leaves and blood at the root
Black bodies swinging in the southern breeze
Strange fruit hanging from the poplar trees

Pastoral scene of the gallant south
The bulging eyes and the twisted mouth
Scent of magnolias, sweet and fresh
Then the sudden smell of burning flesh

Here is fruit for the crows to pluck
For the rain to gather, for the wind to suck
For the sun to rot, for the trees to drop
Here is a strange and bitter crop 

Fruta Estranha Billie Holiday

Árvores do sul produzem uma fruta estranha,
Sangue nas folhas e sangue nas raízes,
Corpos negros balançando na brisa do sul,
Fruta estranha penduradas nos álamos.

Pastoril cena do valente sul,
Os olhos inchados e a boca torcida,
Perfume de magnólias, doce e fresca,
Depois o repentino cheiro de carne queimada.

Aqui está a fruta para os corvos arrancarem,
Para a chuva recolher, para o vento sugar,
Para o sol apodrecer, para as árvores deixarem cair,
Aqui está a estranha e amarga colheita.

http://www.vagalume.com.br/billie-holiday/strange-fruit-traducao.html#ixzz26p1L32vg